Sobre o bem e o mal na obra de Cassandra Claire, por Liz Galeão Neves

A linha, que separa o bem e o mal, é tênue e muitas vezes borrada. Aqueles que possuem e usufruem de seus privilégios, propende a acreditar que essa é fixa e impermeável, na qual eles se posicionam no lado bom, classificados como benevolentes, e os outros… os outros são o inferno, o lado obscuro da força. Entretanto, essa mesma linha é móvel e permeável, sendo que até as almas mais puras e belas poderiam ser atraídas e seduzidas pelas trevas. Do mesmo modo, que até aqueles considerados corrompidos e sem salvação poderiam atravessar este marco e se estabelecer, se somente tivessem ajuda para se recordarem que sempre haverá luz para aqueles corajosos o suficiente para não somente vê-la, mas ser a sua própria luz. O mundo é, foi, e sempre será cheio do bem e do mal, dado que isso dita a condição humana. 

As pessoas consideradas más ao viés da sociedade, porém que ainda usufruem de sua humanidade, sendo este ser “humano” considerado "compassivo, simpático, generoso, comportado e disposto: a qualidade ou o estado de ser humano", podem ser gradualmente transformados em pessoas boas. Desta mesma maneira, aqueles considerados bons e ordinários, podem ser transformados em perpetradores do mal. A história de Lúcifer, o “atual” príncipe do inferno, ilustra este quadro. O denominado Demônio, na verdade tem como significados e deu nome original o termo “luz”, enquanto seu sobrenome, Morgenstern, significa “estrela da manhã”. Ao que tudo indica, o motivo de ser submetido ao título de comandante do inferno, foi ter desobedecido a autoridade máxima, Deus. Ao realizar tal ação, Michael, o arcanjo, é enviado para expulsá-lo do céu juntamente com os outros anjos caídos. Com isso Lúcifer descende para o inferno, torna-se Satanás, o Diabo, e a força do mal no universo cria forma.

Paradoxalmente, foi Deus aquele que criou o inferno como um lugar para reter todo mal. Tal arco de transformação cósmica, do anjo favorito de Deus para o então Diabo, define o contexto para a compreensão dos seres humanos,que são transformados de pessoas boas e comuns em autores do mal. Assim, em última instância, o efeito Lúcifer, embora se centre nos negativos; os negativos que as pessoas podem tornar-se, remete à seguinte definição. O mal é o exercício do poder. Prejudicar intencionalmente as pessoas psicologicamente, magoar as pessoas fisicamente, destruir pessoas mortalmente, ou ideias, e cometer crimes contra a humanidade. O mal, “é tudo aquilo que é realizado em oposição ao que é lícito (mal moral) ou o que se contrapõe ao desenvolvimento normal da vida e da natureza em geral (mal físico), ou, ainda, ocorre a partir de ações negativas das for-ças/causas sobrenaturais (mal metafísico)”. A definição do bem e do mal, é a mesma que distingue, na maioria das vezes, o herói do vilão. Todavia, ambas definições são fruto do desenvolvimento de instintos de cooperação em massa, mitos partilhados, que fazem da vida em sociedade uma possibilidade plausível.

Nos livros de Cassandra Claire, que originaram a série da Netflix: Shadowhunters, a autora desenvolve personagens de alta complexidade. Dentre a variedade de personagens o que recebe maior destaque é Jace Herondale. O menino, desde o princípio dos livros, é apresentado de forma um tanto um quanto heroica e divina. Entretanto, Jace revela certos aspectos, como determinação, humor e atração ao perigo de maneira a surgirem questionamentos a respeito de seu heroísmo. O personagem fazia suas tomadas de decisões quase suicidas, entretanto , essas eram sempre baseadas em motivos sólidos, compreensíveis, e até de partir o coração dos leitores. Foi provavelmente por essas razões, por ter a solidariedade daqueles que acompanhavam a história de perto, que o personagem manteve o seu título de herói. Por outro lado, o personagem Sebastian (Jonathan) Morgenstern, é quase de imediato declarado vilão. Esse por sua vez, demonstra uma personalidade obscura, desejos impróprios, e pensamentos, que para muitos, são antiéticos. Entretanto, a relação estabelecida entre estes personagens é profunda e complexa. A sociedade em que estes personagens se instalam se baseiam, em grande parte, na crença de que “ os homens são criados iguais, que são dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura de felicidade”. Primeiramente, ambos os personagens foram criados pelo mesmo pai, que discordava das autoridades e ambicionava tornar a sua “raça” (de Caçadores de Sombras) digna como uma vez fora. Sendo assim, criou seus “filhos” para se tornarem excelentes guerreiros e aliados na guerra em que ele iniciaria. Desta forma, Jace e Sebastian foram ensinados os mesmos valores, que amar é destruir e ser amado é ser destruído.

Entretanto, os meninos, após terem os mesmo ensinamentos, obtiveram resultados exorbitantemente distintos, na qual um foi concebido ao título de herói enquanto o outro se tornou o vilão. Por conseguinte, levanta-se o seguinte questionamento: de que maneira todos os humanos são iguais uns aos outros? Os leitores acreditam que o motivo de destinos tão distintos foi a ficção por trás da história; o fato de Jace possuía mais sangue angelical enquanto o outro possuía sangue demoníaco. Contudo, do ponto de vista biológico os seres humanos não podem ser “criados” mas sim, evoluir. Desta maneira, quando se trata de evolução, é impossível citar o termo “iguais”, uma vez que este está intrinsecamente conectado à ideia de criação. O teor da palavra “evolução” por sua vez, se baseia na diferença, no desenvolver de qualidades distintas. A verdade é que ambos os personagens infringiram as leis determinadas pelos seus governos, causando grandes problemas e a morte de diversos personagens, tornando-os antiéticos. Portanto os meninos apesar de criados de forma "igualitária" evoluíram de maneiras distintas. Igualmente a impossibilidade de criação de pessoas, tampouco existiria um “criador”. Ao seguir a mesma linha de raciocínio biológico, seria inconcebível a existência de um “criador” que os teriam “dotado” de certos aspectos como o caráter pessoal. Dessarte, haveria apenas “um processo evolutivo cego, destituído de propósito, levando ao nascimento de indivíduos”. 

É possível então, concluir que Jace e Sebastian evoluíram de maneira dessemelhante e que o pai não os teria condenado a coisa alguma, portanto aquilo que se tornaram seria fruto unicamente de sua biologia, de um processo desprovido de propósito. Conquanto a denominação de seus respectivos títulos, herói e vilão, foi decorrente da redenção proporcionada a somente um dos personagens da narrativa. A área da ciência que estuda a vida e os organismos vivos desconhece por sua vez os termos “direitos”, “liberdade” e “felicidade”, por conseguinte só se pode imaginar que a palavra “ redenção” também seja inédita. De acordo com a biologia existem somente órgãos, habilidades e características. Entretanto, nenhum desses pode ser considerado inalienável, visto que nada na vida é para sempre. Todo ser vivo está constantemente em período de transição, mudança, mutações. Logo, o ser humano pode ser descrito como um conjunto de órgãos em constante mutação. Algumas das características que evoluíram ao passar do tempo nos seres humanos, foi certamente a vida. Contudo, liberdade assim como igualdade e direitos, é fruto da imaginação humana. Da perspectiva biológica não há coerência na concepção de que os seres humanos em sociedades democráticas são livres, em contrapartida que aqueles que são submetidos a vida em sociedades ditatoriais não o são. A felicidade em si não dispõe de um equivalente na biologia, que se restringe ao reconhecimento, unicamente, do prazer, que por sua vez pode ser definido e medido. Dessarte, no campo biológico, o termo “a vida, a liberdade e a procura da felicidade” será transcrito como “a vida e a procura do prazer”. 

Por certo, as pessoas não são biologicamente iguais. Porém, visando uma sociedade estável e próspera nós somos guiados a acreditar que somos iguais na essência. Essa crença emerge da “ordem imaginada”, na qual acreditamos em determinada ordem por motivos que ultrapassam a verdade objetiva, mas que nos permite cooperar efetivamente concretizando a visão de uma sociedade melhor. No entanto, a mesma lógica pode ser utilizada a favor de Sebastian que acreditava que se não pudesse dobrar parte do céu que então ele elevaria o inferno. Esse por sua vez diria que apesar de todos serem inerentemente diferentes se eles fossem forçados a verdadeiramente e cegamente acreditarem que somente ele não fosse, isso permitiria criar uma sociedade estável e próspera. A ordem natural é uma ordem estável. Por conseguinte, a ordem imaginada é rúptil, um eterno subalterno dos mitos. Estes por sua vez desaparecem ao longo do tempo exigindo esforços árduos e contínuos para que sejam recuperados. Tais esforços muitas vezes se materializam em forma de violência e coerção, impondo a ordem imaginada. No entanto, tal ordem não se pode sustentar na premissa da violência por si só, e exige pessoas que verdadeiramente acreditem nela. Ademais,não importa quão eficientes sejam as baionetas, alguém precisa empunhálas”. Sintetizando, a definição do bem e do mal é uma ordem imaginária, constituída de mitos partilhados que objetiva definir os princípios universais e eternos de justiça para a formação de uma sociedade harmoniosa. Entretanto, nada na vida é para sempre, já tudo é mutável. Dessa forma a concepção do certo e errado, justo e injusto, muda conforme o tempo uma vez que são conceitos de ordem imaginária. Para que a sociedade não entre em colapso, é dito que a ordem que sustenta a sociedade é uma realidade objetiva originada por deuses ou leis naturais. No mundo dos Caçadores de Sombras eles acreditavam nos Anjos, forças divinas e superiores a eles. Isso faz com que esses acreditem na ordem imaginada, que está sempre sob ameaça. O herói tende a ser aquele que de certa forma transforma positivamente ou reafirma a ordem imaginária, sempre mantendo a premissa dos desejos divinos. Já o vilão é aquele que desafia a ordem imaginária e que por conseguinte é mal visto pela sociedade que acreditava tão firmemente em seus ideias. Por tais motivos o vilão deve ser contido, ele arrisca a vida considerada harmoniosa e justa ao tentar impor novas ordens imaginárias geralmente por meio de forças violentas e coercitivas.

A mudança sempre vai ser acompanhada de dificuldades, independentemente de quem instaure uma nova ordem imaginária sempre haverá destruição. Entretanto, a mudança estabelecida pelo herói é bem vista pois simpatiza muitas vezes com a ordem imaginária anterior enquanto a do vilão se distingue totalmente. E esse que passa a ser odiado segue a acreditar firmemente em sua ordem que sacrifica a sua humanidade. Para não estilhaçar a ordem imaginária o vilão é contido e redenção deixa de ser uma possibilidade. "Nunca houve nada como redenção para Sebastian. Mas isso não impede os sonhos, impede? Nos meus sonhos, às vezes, ainda vejo o irmão que poderia ter tido, em algum outro mundo. O de olhos verdes.[...]. Quando as pessoas morrem, o sonho do que elas poderiam ter sido morre com elas. Mesmo que as mãos que encerram esses sonhos sejam as nossas." 

(Foto de Mateus Campos Felipe, Unsplash)

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