Quem é o “eu”?, por Ana Sofia Paiossin Quelhas

Muitas vezes se é dito que nós somos nossos pensamentos, mas se muitas vezes não podemos controlá-los, quem somos de fato? No livro de Tartarugas Até Lá Embaixo, de John Green, é abordada a ideia de que não temos total controle sobre nossos pensamentos nem tampouco nosso corpo. Com o processo de renovação celular, nem mesmo todos os componentes biológicos de nosso corpo permanecem os mesmos no decorrer de nossas vidas. 

O livro de Green traz a história de uma garota de dezesseis anos chamada Aza Holmes, que, acompanhada de sua melhor amiga Daisy, tenta resolver o mistério de um milionário desaparecido. Durante suas aventuras e um romance com o filho do milionário, a protagonista lida com TOC (transtorno obsessivo compulsivo), que muitas vezes a impossibilitam de fazer o que deseja. Por causa de seus transtornos mentais, Holmes sofre de muitos pensamentos intrusivos que não sairão de sua mente até que ela os realize. Além disso, ela tem uma fixação pelana biologia humana que a faz questionar: se existem microorganismos vivos que nos compõem, será que sou uma coisa só? Por conta disso, ela se encontra em um constante dilema sobre sua identidade, procurando pela resposta à pergunta “quem sou eu?”. 

Heráclito, um filósofo pré-socrático, defendia a ideia de que tudo muda a todo tempo, inclusive o ser humano, e desprezava a ideia de “essência”. Isso nos leva à questão: até que ponto faz sentido falar de um “eu” sendo que nós somos um “eu” diferente a cada instante? A questão do “eu” na filosofia foi introduzida por Sócrates, de quem temos conhecimento através de seu discípulo Platão. O filósofo tomou como inspiração para suas reflexões uma inscrição na entrada do templo de Delfos, que dizia “conhece-te a ti mesmo”. Essa frase despertou a busca pelo autoconhecimento e foi a faísca para muitas outras filosofias que mais tarde se basearam no mesmo assunto. 

Para Sócrates o homem é sua alma, aquilo que define suas morais. A personalidade e a individualidade do ser humano é determinada pela sua razão, sua mente. A vista disso, ele traz a ideia de que o auto cuidado se dá pela da preservação e estimulação do cérebro, meditação, e reflexão sobre si, tirando o foco do corpo. A partir deste ponto, o “eu” passa a ser o principal objeto de estudo da filosofia. Sob o microscópio desse novo foco, podemos rever filósofos pré-socráticos com novos olhos. Um que se destaca é Heráclito, cujas ideias sobre movimento revolucionaram o modo de pensar de sua época. Este viveu de 540 a 470 a.C. e, apesar de pouco se saber sobre sua vida, os pensamentos deixados permanecem em relevância até a modernidade. Heráclito toma como rumo para sua filosofia o conceito de que tudo está em constante movimento e que a única permanência é a mudança. A natureza e o homem existem em um estado de fluxo perpétuo, isto é, a mutabilidade é um estado fixo de tudo aquilo que existe. O filósofo tem como uma de suas frases mais populares: “Ninguém entra em um mesmo rio uma segunda vez, pois quando isso acontece já não se é o mesmo, assim como as águas que já serão outras.”. 

Essa afirmação captura, condensadamente, o conceito de fluxo heraclitiano. Esta diz que não se pode entrar em um mesmo rio duas vezes, pois quem entra já não é mais a mesma pessoa e as águas também terão mudado. Seguindo a mesma linha, temos o popular paradoxo do barco de Teseu. Diz a lenda que Teseu, rei que fundou Atenas e matou o minotauro, teria voltado para casa e atracado seu barco em um porto da cidade. 

Durante mil anos, os atenienses preservaram o navio do herói, substituindo partes que se danificaram com o tempo por outras exatamente iguais. Depois de um tempo, todas as peças haviam sido trocadas, não restando nada do barco original. A partir dessa situação surge a indagação: “seria esse barco o original?”, apesar de ser fisicamente idêntico ao barco da lenda, nenhuma de suas peças era a original que à tantos anos atrás teria sido usada por Teseu em suas aventuras. Pode-se traçar uma relação desta história com o ser humano, que ao decorrer de sua vida tem seus membros e células mudarem completamente, ter pensamentos e ideais que não condizem com aqueles que possuía no início de sua vida, mas ainda é considerado a mesma pessoa. Assim como o barco, estas transformações ocorrem uma de cada vez, no decorrer do tempo; mas não muda o fato de que eventualmente existirá uma mudança completa. 

Tendo em vista essas ideias, percebemos que o ser humano está em constante mudança, seja ela intelectual ou biológica. Isto posto, seria justo atribuir uma mesma identidade individual e duradoura para toda a vida de um alguém? Como podemos dizer que, por exemplo, um indivíduo na sua infância é a mesma pessoa que esse mesmo em sua fase adulta? Sócrates dizia que um ser é definido por sua mente, não sua composição física. Heráclito rejeitava a ideia de essência de um ser, ou seja, algo que permaneceria imutável no decorrer de sua existência. Considerando ambos os pontos de vista, seria lógico concluir que o “eu” consiste das memórias e valores do ser humano e existe apenas no presente.

Quem você é não se trata de controle sob seus pensamentos, como a protagonista do livro “Tartarugas Até Lá Embaixo” sugere, e sim de como você reage a eles naquele momento. 

(Foto de Annie Spratt, fonte: Unsplash)

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