O corpo no centro do feminismo, por Catarina Nunes Portella

“O corpo no centro do feminismo: de que modo a corporalidade da mulher e os significados sociais que se lhe atribuem condicionam sua existência e liberdade” Resumo: No Ensaio Filosófico apresentado, procura-se discutir e entender com maior profundidade a questão norteadora proposta. Destarte, torna-se imprescindível distinguir os termos sexo e gênero, e a partir disso, discutir como se relacionam à forma com a qual indivíduos se desenvolvem e percebem a si próprios e aos outros em sociedade. Ao colocar a construção cultural do feminino e do masculino, busca-se evidenciar o condicionamento da existência dos indivíduos de acordo com expectativas que nascem a partir de questões biológicas, atribuindo-lhes determinados papéis sociais em meio à civilização e usando, erroneamente, a corporalidade para justificar essas distinções e consequente discriminações sociais presentes no mundo hoje. 

Os seres humanos estão tão acostumados ao uso dos termos “homem” e “mulher”, que, muitas vezes, falham em questionar-se sobre o que eles realmente significam. Esses termos se referem a gêneros. A palavra “gênero” é frequentemente utilizada como sinônimo de “sexo”. Todavia, essas duas palavras não possuem o mesmo significado e a falta de distinção entre ambas expressa uma das raízes da desigualdade, proporcionando certa lacuna no que diz respeito à liberdade das mulheres. Com isso, pode-se colocar o corpo no centro do feminismo: de que modo a corporalidade da mulher e os significados sociais que se lhe atribuem condicionam sua existência e liberdade? 

Segundo Simone de Beauvoir, escritora, intelectual, filósofa existencialista, ativista política, feminista e teórica social francesa, "ninguém nasce mulher: torna-se mulher". Simone traz esse conceito em seu livro “O Segundo Sexo”, onde fala sobre determinados significados sociais e seu posicionamento acerca de como esses significados se relacionam ao corpo da mulher. Suas ideias e reflexões no que se refere a essa questão e a estereótipos relacionados a mesma, continuam a ser revolucionárias até os dias atuais, mesmo que seu livro tenha sido publicado 70 anos atrás. Com isso, através deste ensaio, procura-se esclarecer a distinção entre os termos comentados anteriormente: sexo e gênero, e a partir deste entendimento, discutir como se relacionam à forma com a qual indivíduos se desenvolvem e percebem a si próprios e aos outros em sociedade. Faz-se imprescindível, portanto, que seja colocada a construção cultural do feminino e do masculino, que condicionam a existência dos indivíduos de acordo com seus atributos biológicos, usando a corporalidade para justificar distinções e discriminações sociais presentes no mundo hoje. Ou seja, ao trazer tal hipótese, busca-se tornar possível o desenvolvimento de uma percepção mais profunda em relação a o quanto a corporalidade da mulher condiciona sua existência, a partir de papéis sociais que lhe são atribuídos em meio à civilização e justificados através do sexo. 

A desigualdade de gênero que persevera no mundo hoje é fruto de um conjunto de fatores que levaram a visão da mulher como subalterna. A questão de gênero é fonte de diversos questionamentos e reflexões acerca dos sujeitos e do mundo. Dúvidas, incertezas, necessidade de respostas, lutas: pergunto-me frequentemente, qual a origem disso tudo? Será mesmo que algo tão banal quanto o sexo de nascimento de alguém deveria ter tanto poder sobre a forma como um indivíduo é visto e tratado em meio a sociedade? Perguntas, perguntas e mais perguntas, agora busco respostas: entender as relações estabelecidas entre sexo e gênero, e como essas relações acabam por influenciar os comportamentos no mundo. 

Primeiramente, acredito ser de extrema relevância estabelecer alguns conceitos. Desse modo, busco explicar a famosa frase de Beauvoir: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Para ela, a distinção entre sexo e gênero eram essenciais. Segundo o dicionário, sexo é um “conjunto de características físicas e funcionais que distinguem o macho da fêmea” (Infopédia), ou seja, é um fator biológico que nos permite diferenciar o sexo masculino do sexo feminino. Gênero, por outro lado, diz respeito a uma construção social, ou seja, se refere a diferenças cultrais e socias definidas ao longo do tempo pela sociedade, constituindo o papel, função ou comportamento esperado de alguém, baseando-se em seu sexo biológico (GUEDES, 2015). Com isso, pode-se concluir que “todo ser humano do sexo feminino não é, portanto, necessariamente mulher” (BEAUVOIR, 1949), e que a falta de diferenciação entre os dois conceitos apresentados tem como consequência o uso errôneo de gênero para se referir ao sexo, o que nos direciona não só a origem, mas a repercussões profundas das discriminações e desigualdades socias que afligem o nosso dia a dia. 

Nesse viés, em meio a uma humanidade masculina, a corporalidade da mulher é colocada como justificativa para a atribuição desses papéis sociais, consequentemente condicionando os indivíduos de acordo com expectativas a partir das quais crescem e constroem seus interesses. Ao situar o corpo como instrumento de compreensão do mundo, a sexualidade acaba por exprimir, de modo equivocado, a totalidade de uma situação na qual os gêneros são definidos. Entretanto, como vimos anteriormente, gênero corresponde a um comportamento e, segundo Simone de Beauvoir, o comportamento é uma reação secundária à situação, não a condições biológicas com as quais alguém nasce. Assim, pode-se definir a mulher como o “estado atual da educação e dos costumes”, não como uma “essência imutável” (BEAUVOIR, 1949). Mas, se as mulheres representam cerca de 50% da população, como a humanidade pode ser masculina? É exatamente esse fator que faz com que o fato de o mundo ser masculino se torne extremamente chocante. Não me refiro aqui a uma questão quantitativa, e sim a uma hierarquia dos sexos (BEAUVOIR, 1949). Me refiro aqui, a condição subordinada atribuída a mulheres. Me refiro aqui, a inferioridade feminina que foi construída ao longo dos séculos, ao longo da história da humanidade. Nessa história, mulheres e homens nunca foram postos como iguais: a mulher é definida não em si, mas relativamente ao homem. 

É dessa forma que a autora do livro “O Segundo Sexo”, Simone de Beauvoir, explica a condição da mulher como “Outro”. Mesmo após o passar de tantos anos, quando a força física já deixou de ser um fator determinante (ADICHIE, 2014), a mulher continua a ser “Outro” e o homem continua a ser o "Indivíduo Absoluto”. A humanidade continua a ser masculina pois, de acordo com Simone, “O presente envolve o passado, e no passado toda a história foi feita pelos homens” (BEAUVOIR, 1949). Essencialmente, isso não significa uma falta de interesse da mulher em fazer a história, e sim uma negação de seus feitos e de suas capacidades. As mulheres, assim como muitos outros, se encontram excluídas da história, não só através da falta de reconhecimento de suas ações e participação, mas também através da falta de abertura que negligencia a possibilidade de participação. A opressão, exclusão e ignorância marcam o passado de uma camada marginalizada, e é necessário lutar para que essas marcas não sejam esquecidas em um futuro que diverge dessas mesmas condições. Em contraste com o que foi afirmado anteriormente, muitos ainda defendem a ideia de que a inferioridade ou incapacidade conjectural da mulher se dá de acordo com sua natureza. Que a condição de mulher transcorre a partir de fatores biológicos. Que seus interesses e comportamento são condicionados por seu sexo. Na verdade, os interesses são meramente construções sociais, assim como os gêneros. Meninas e meninos têm seus interesses condicionados desde a primeira infância, quando lhes é imposto um modo de ver e de se relacionar com o mundo através do qual os indivíduos constroem seu entendimento de comportamentos e conduta, pelos quais devem basear-se para assumirem seus supostos papéis em uma sociedade. “A mulher não se define nem por seus hormônios nem por misteriosos instintos e sim pela maneira como se reassume, através de consciências alheias ao seu corpo e sua relação com o mundo” (BEAUVOIR, 1949). Pode-se afirmar, portanto, que a condição de “Outro” é imposta à mulher desde o nascimento (BEAUVOIR, 1949). Enquanto crescem nesse mundo, são educadas a certas normas de conduta direcionadas especificamente a elas. Em sua formação, não é comum receberem sua independência da mesma forma que homens a recebem. Essa independência, se não lhes é negada, é diminuta, e sua liberdade, prejudicada. 

De acordo com o filósofo Jean-Paul Sartre, estamos todos condenados a ser livres, pois podemos sempre escolher (SILVA, 2013). Posterior a essa ideia, a mulher é, de fato, livre. O problema que se apresenta aqui é: o quanto as suas escolhas são cerceadas pela condição que lhes é constrangida, desde o berço, devido a sua corporalidade? conclusão: De acordo com tudo o que foi posto acima, pode-se concluir que a condição da mulher como inferior e subalterna do homem não se dá de acordo com sua natureza, ou através de uma questão biológica. Esse papel lhe foi atribuído e constituído em meio à civilização, ao longo da história da humanidade. O modo como a mulher existe em sociedade lhe foi imposto, através do condicionamento de seus interesses e conduta de acordo com expectativas de gênero criadas a partir do momento em que um indivíduo se apresenta no mundo como pertencente ao sexo feminino ou ao sexo masculino. Estas expectativas de gênero, que nascem a partir de algo tão frívolo quanto o sexo de alguém, acabam por impor certos comportamentos que se esperam do indivíduo. Ser uma mulher, portanto, diz respeito a essas construções sociais que condicionam sua existência e liberdade. Faço questão de destacar aqui que o coletivo “mulheres” abrange diversos indivíduos extremamente diversos, com histórias e experiências de vida muito diferentes umas das outras. 

Assim, busco esclarecer que o objetivo deste ensaio é, na verdade, ressaltar que independente das singularidades que distinguem uma mulher de outra, ou uma mulher de um homem ou qualquer indivíduo de outro, nós somos todos essencialmente seres humanos e, logo, todos temos o direito de ser tratados como iguais (BEAUVOIR, 1949). Todos merecemos ter nossos direitos respeitados de forma congruente. Merecemos ser tratados e respeitados da mesma forma. Merecemos ser livres para sermos quem realmente somos, sem que expectativas recaiam sobre nós de acordo com nossa corporalidade.

Referências: --- BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Vol. 1 e 2, Vintage Classics, 1949. Infopédia. “Sexo | Definição Ou Significado de Sexo No Dicionário Infopédia Da Língua Portuguesa.” Infopédia - Dicionários Porto Editora, www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/sexo. Guedes, Maria Eunice. “Gênero: Você Entende O Que Significa?” Politize!, 25 Nov. 2015, www.politize.com.br/vamos-falar-sobre-genero/. Chimamanda Ngozi Adichie, and Christina D Baum. Sejamos Todos Feministas. 2014. Sao Paulo, Companhia Das Letras, 2015. Bôas Da Silva, Vilas. “A Concepção de Liberdade Em Sartre.” , 2013.

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