Sobre a Maldade na obra Rainha Vermelha, por Marcela Cortez Seabra de Mello

Mare Barrow. Uma garota pobre, de sangue vermelho, presa a um mundo de divisões. Uma sociedade onde pessoas de sangue prateado possuem poderes além da compreensão humana, e as de sangue vermelho são vistas como inferiores por serem “normais”. Mare é a protagonista da saga literária “Rainha Vermelha”, e em meio ao contexto que lhes foi apresentado, ela se destacava. Após entrar em contato com um nível demasiadamente elevado de um escudo de eletricidade, a protagonista descobre um poder secreto, que choca a sociedade inteira. Esse poder, acaba sendo o responsável por realizar uma imensa desestabilização em todo o modo de funcionamento da sociedade a qual a personagem pertencia. 

Ao longo da história, ela luta contra a monarquia prateada, buscando o fim de uma guerra existente há mais de 100 anos e visando a igualdade entre prateados e vermelhos. Mare, que se dizia justa, que tanto criticava as ações do rei e da rainha, os assassinatos de vermelhos, o descaso pela vida humana que eles demonstravam, e a falta de liberdade que eles ofereciam às pessoas, acabou caindo em um abismo de mesmice. A poderosa protagonista, na luta pela igualdade e paz, acabou tirando vidas, acabou tirando a liberdade de muitos, acabou vendo prateados como inferiores, e mesmo que por pouco tempo, ela se tornou aquilo contra o qual ela lutava. Sucumbindo ao seu inimigo, e agindo tal qual ele. Alicerçando a isso, levanta-se a questão: se Mare acabou se corrompendo de tal maneira, o que impede que façamos o mesmo? Até que ponto os ideais sobrevivem à corrupção? Às paixões? É possível não se corromper e não se deixar levar pelas circunstâncias? Afinal, até que ponto podemos vencer os inimigos sem nos tornarmos iguais a eles? 

Os seres humanos seguem suas vidas na premissa de que suas ações podem ser justificadas de modo no qual seriam consideradas corretas. As pessoas afirmam pensar de forma altruísta, não egoísta, e empática. Porém, quando nos vemos com dilemas pessoais que podem acabar ferindo alguém para atingirmos nossos objetivos, qual caminho devemos seguir? Assim como a “Rainha” vermelha, a maioria dos humanos, seguiria, às cegas, o caminho no qual te beneficiaria, mesmo que não enxergasse os danos que estaria causando. Às vezes, a pessoa analisaria seu objetivo como superior ao problema que causaria, às vezes, tal objetivo envolve salvar diversas vidas, como o da protagonista, mas isso justificaria a perda de outras? 

Nicolau Maquiavel, um filósofo renascentista, defendia a teoria de que “os fins justificam os meios”, e dessa forma, poderíamos compreender que o ser humano deve ir aos seus limites extremos de moral para atingir um bem maior. Portanto, Mare justificaria suas ações e as vidas perdidas, como meios para um fim, que seria a salvação de todo um povo. Porém, se o humano se corrompe de tal maneira, como garantir que ele não se perca ao ponto de nunca retornar? De que adiantaram os fins ou os meios se não sobrar nada para conquistá-los? É imprescindível a consideração pelo simples fato de que cada ser humano possui controle apenas de seus próprios direitos, então, em que momento eles passam a incluir a decisão de quem deve viver ou morrer? Quem pode ser sacrificado para atingir o fim? Seria a pretensão humana de ver-se como um “justificador”? “Como aquele que tudo sabe”? Se o homem possui bondade em si, seguir tal premissa não o faria corromper-se até perder-se completamente e abandonar tal bondade? Mas e se, como dizia Thomas Hobbes, pensador inglês, “o homem for o lobo do homem”? Se o homem for mau por sua própria natureza, suas ações não necessitam de justificativas. Seria natural um ser se priorizar ante a outras pessoas. Mas então, por que Mare iria se esforçar tanto, a ponto de corromper-se, apenas para salvar outras pessoas. Onde entraria a maldade em tais atos? 

A maldade humana não está entrelaçada em nós, e sim em nossas ações. Acredito que, um ser humano dotado de bondade e com boas intenções pode sim realizar atos de maldades. Afirmar que é de nossa natureza ser mau, se prova incorreto quando vemos diversas pessoas que completam suas vidas com moral, integridade e valores intactos. O problema não está no homem individualizado e sim nas circunstâncias impostas pela sociedade criada pelo homem em coletividade. Na maioria das vezes, as circunstâncias nas quais os seres humanos são impostos não os favorecem para ressaltar a bondade presente neles, e dessa forma, muitos são corrompidos, e levam a crença de que a maldade já está implementada no humano, porém isso não é verdade. Se analisarmos diversos casos diferentes, podemos notar múltiplas pessoas que passaram por condições e circunstâncias desfavoráveis e apesar disso, mantiveram seus valores éticos intactos e traçaram um caminho de bondade, indo contra a crença de que o homem é mau por sua própria natureza. Se houvesse maldade em todos, como alguns poderiam manter sua virtude nas mesmas condições em que outros se rendem à maldade? A resposta seria lógica, a maldade não está toda nas pessoas, e sim nas ações individuais de cada um. 

O homem pode até ser dominado por crueldade e falta de ética, mas se houver virtude nele, ele pode se sair bem, sem se corromper a escuridão interior. Em momentos difíceis, seria essa, sequer, uma possibilidade? Podemos não nos corromper? Como dizia Hobbes “Tudo aquilo que é válido para um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, o mesmo é válido também para o tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria força e sua própria invenção.” Ou seja, se não possuímos a segurança de nossas próprias identidades, seria mesmo uma corrupção moral tomar novos caminhos para atingir certos objetivos que visam trazer a paz para muitos outros além do próprio ser? Se pararmos para refletir nisso, nunca chegaremos em um único consenso, pois tudo na vida se baseia em diferentes pontos de vista, e por mais que busquemos uma verdade absoluta, como se pode ter certeza que ela sequer existe? O homem é ou não mau por natureza? O homem pode ou não pode se corromper para um bem maior? Os fins justificam ou não justificam os meios? Como posso responder tais perguntas se até mesmo nossos filósofos modelos não souberam responder. Se cada ser é dotado de uma individualidade e pontos de vista distintos, como podemos atingir uma única conclusão? Não podemos. Não existe uma única resposta para tal questão. Até onde podemos ir para vencer nossos monstros sem nos tornarmos eles? A resposta correta seria: até onde sua consciência ainda for sua. 

No momento em que você se perde, em que você se depara com decisões e ações que não definem sua personalidade mais inocente, você atingiu seu limite. Mare foi até seu fim, e quando se perdeu, soube retornar e atingir seu objetivo de forma a não se tornar seu monstro, então se ela se corrompeu e retornou, ela havia se corrompido de verdade? De fato que não. Ela nunca sucumbiu de verdade à escuridão. Ela foi até seus limites e retornou. E cabe a nós percebemos quando devemos fazer o mesmo.

Como podemos ver, existe uma grande relatividade quando tentamos compreender as ações dos outros e suas justificativas. Se o ser humano é tão suscetível à corrupções morais, como podemos garantir que permaneceremos puros e bons? E até onde, nossas ações são consideradas puras e boas? Seria de nossa natureza efetuar atos de má intenção? Pode-se justificar as ações humanas apenas por um objetivo de maior grandeza? As controvérsias permanecem eternamente, pois não se pode afirmar que existe apenas um correto ou um errado, o universo carece de uma verdade absoluta e nos surgem apenas dúvidas, as quais sempre nos levarão para outras dúvidas. Um ciclo infinito de perguntas e nunca de respostas.

Cada um busca sua verdade absoluta, mas se ela não existir? Para onde irão as certezas do mundo quando houverem apenas incertezas? E neste vasto universo duvidoso, como podemos dizer quem é vitorioso? (Foto: Maria Teneva, fonte: Unsplash)

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